4 de maio de 2015

um artigo

reproduzo aqui um artigo que escrevi para o suplemento pernambuco de maio de 2015, disponível aqui. reproduzo também a imagem que acompanha o artigo.



Traduzindo O pequeno príncipe

Aí uma editora me propõe traduzir Le Petit Prince, de Saint-Exupéry. A proposta me parece meio inusitada. O pequeno príncipe?! Aquele livro das misses? Aquele clássico infantil doce e açucarado, com bichinhos e estrelinhas? Aquilo que, cinquenta anos atrás, a gente lia aos dez anos de idade? “Mas por que não?”, pergunto a mim mesma. “Pode ser um desafio ao teu próprio esnobismo intelectual, Denise, vai lá, deixa de frescura, tenta a mão”. E assim me armo de coragem e topo a proposta.
Bom, aí toca a reler — na verdade, leitura de tradução é muito diferente de leitura-leitura; então, toca a ler. O difícil é a gente trafegar entre camadas e camadas de clichês, de citações consagradas, de auras iridescentes em torno da obra. Como sou da convicção de que a melhor maneira de lidar com qualquer sedimentação, até para conseguir desincrustá-la um pouco, é explorá-la a fundo, entrego-me à tarefa na maior animação.
E como fazer junto é mais gostoso — e muito mais fecundo — do que fazer sozinha, crio no Facebook um “Clube dos Amigos do Pequeno Príncipe”, pois não existe isso do “traduzir sozinho” — é uma falácia essa imagem da tradução como ofício solitário. Você está perpetuamente falando, conversando, dialogando: com a obra, com a fortuna crítica da obra, com outras traduções da obra (quando existem), com os artigos, análises e estudos da obra, com seu repertório mental e até, e muito, com dicionários. Então é fenomenal quando você pode conversar com outros tradutores e/ou conhecedores da obra e comentar os mais variados aspectos. Surgem coisas fantásticas, materiais maravilhosos, um fervilhamento de questões. E a aparente singeleza do Pequeno príncipe, você vem a descobrir, é danada de enganosa e engenhosa.
Mas vamos por partes. Le Petit Prince ingressou em domínio público a partir de 01 de janeiro de 2015. Foi escrito e publicado em 1943, nos EUA (onde Saint-Exupéry havia se refugiado da guerra na Europa), em francês, claro, e quase em simultâneo em inglês, em tradução feita por Katherine Woods, a esposa do editor que encomendara a obra a S-E. Vale notar ainda que o livro é permeado, do começo ao fim, de elementos biográficos do próprio S.-E. 
No Brasil, O pequeno príncipe foi publicado em 1954 (alguns dizem 1952, mas não encontrei confirmação), em tradução feita pelo monge beneditino Dom Marcos Barbosa, publicada pela editora Agir. Essa tradução teve uma divulgação fantástica, impressionante, sendo a única durante sessenta anos — apenas em 2013, a mesma Agir publica nova tradução, e a partir de 2015, devido ao ingresso da obra em domínio público, temos uma miniavalanche de novas traduções.
Acontece que a tradução de Dom Marcos se consagrou. Algumas falas dos personagens se cristalizaram de tal forma no português brasileiro que quase adquiriram autonomia por direito próprio em nosso imaginário. Um dos exemplos mais claros é aquela frase: “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas” (em francês, “Tu deviens responsable pour toujours de ce que tu as apprivoisé”).
Quer dizer, é um pepino danado, que nem vem ao caso para o leitor. É um embate, uma refrega entre o autor e o tradutor, entre o francês e o português, pois apprivoiser pouco ou nada tem a ver com “cativar”, não tem a acepção de prender em cativeiro e, sobretudo, não tem a acepção de encantar, conquistar, seduzir que há em “cativar”.
E então o que você faz? Imagina só trombar de frente com sessenta anos de edificação sobre a ética da responsabilidade permeada desse cativamento!
Mas vai usar “domesticar”, que é o sentido mais próprio de apprivoiser? Ou “domar”? Em termos afetivos, transposto para a esfera humana, apprivoiser tem no máximo o sentido de acalmar, aquietar, sossegar, amansar: algum petiz meio levado e travesso que depois, alguma hora, vai s’apprivoiser.
Ainda por cima, essa frase, que muitos tomam como a própria síntese do livro (eu, pessoalmente, considero-a no mínimo como a grande moral da história), vem como coroamento de um longo diálogo entre a raposa — outro pepino! — e o rapazinho, no qual o termo é usado várias vezes e explorado conceitualmente na narrativa.
Suspiro.
Mas o que mais espanta, analisando a estrutura simbólica do livro, é o predomínio maciço, se não exclusivo, de figuras masculinas em torno de uma única figura feminina. Isto é, no francês. Vejamos os protagonistas e principais coadjuvantes: de um lado, temos a rosa (la rose); de outro lado, o pequeno príncipe, o carneiro (le mouton), a raposa (le renard), a serpente (le serpent) e, claro, o aviador-narrador. (Diga-se de passagem que mesmo os figurantes, os protótipos do “mundo dos adultos”, são todos do sexo masculino.) Pois afinal o mote todo da coisa é essa ideia de proteger a pobre rosa, tão mimosa e tão faceira, tão desarmada contra o mundo, que o pequeno príncipe abandonou à sua sorte e à qual ele retornará, após a lição de moral que lhe foi ministrada pelo raposo, agora levando um carneiro e recorrendo aos préstimos do serpento.
Apenas lendo em francês é que se sente essa espécie de armação, de construção dos elementos do mundo no drama do pequeno príncipe e sua amada desprotegida.
Morro de procurar alguma maneira de transpor esse travejamento simbólico-estrutural para nossa língua. “O raposinho”, eu usaria, sem problemas; para le serpent boa, não me pejaria muito em usar “o píton”; agora, e le serpent que propicia o retorno do pequeno príncipe à sua amada rosa? Bato-me, debato-me, rendo-me às circunstâncias — pois existe outra coisa em tradução que a gente nunca pode perder de vista: o chamado “critério de frequência”, a frequência relativa do uso dos termos numa e noutra língua. Há quem pense que tradutor não vive num constante entre a cruz e a espada! Resultado: o mundo do pequeno príncipe em português vai continuar a ser indiferenciado, sem a clara marcação do original na relação entre mundo externo masculino e interioridade doméstica feminina, entre o elemento masculino dominante, capaz de dar conselhos de vida e de verdade, capaz de prover meios e proteção, e o elemento feminino que enfeita e alegra o lar, mas ao qual não se deve dar ouvidos. Em português, se tanto, o predomínio, pelo menos numérico, será feminino: a rosa, a raposa, a serpente.
Outra coisa de dar um banho em qualquer tradutor é o problema do mouton e do bélier. Fica meio longo expor o drama aqui, mas, creiam-me, é de fato um drama. As traduções variam muito: carneiro x bode; ovelha x carneiro; cordeiro x carneiro.
Outro elemento importante, difícil para a tradução, é o uso dos pronomes de tratamento, tu e vous, que constitui uma novela à parte. Se eu adotar o uso de você, senhor, senhorita, pequeninos elementos se perderão: por exemplo, o uso de s’il vous plaît na mesma frase em que se trata o interlocutor por tu, e algumas outras sutis ocorrências.
E a dificuldade maior, a meu ver, é manter o rigor gramatical praticamente constante ao longo da narrativa — não é à toa que Le Petit Prince é até hoje usado nos primeiros anos de alfabetização no ensino francês —, numa tradução que consiga manter a correção e a escorreição. Muito difícil!
Em paralelo com essa grande dificuldade, vem o nível do registro do discurso. Ele não é trivial nem baixo nem infantil nem simplista. É límpido, médio, às vezes quase alto, fluente e elaborado. E infantilizar a fala, coloquializar o que é fluente, mas não propriamente coloquial, não me anima muito. Fazer o quê, então? Mais suspiros. E aí, nas vezes em que me sinto numa encruzilhada, acabo preferindo a dita norma culta.
E as repetições! Nem digo de palavras, mas de orações ou partes de orações inteiras! Essa cantilena na qual às vezes se ouve uma ressonância de intenções didáticas, mas que cria ritmo e arma o estilo... Como passar essa sensação de embalo?
E o enquadramento da narrativa? É de arrancar os cabelos. Pois o autor reserva o uso do passé simple para a parte em que o narrador relembra seu contato com o pequeno príncipe e destina o passé composé para o emolduramento da narração, no começo e no fim da obra, bem como algumas interpolações dirigindo-se aos leitores. Quem conhece um poucochinho que seja do francês (ou mesmo do italiano), vai entender o problema. A questão é que não posso, em sã consciência, aplainar essa cuidadosa elaboração, que é estrutural mesmo, usando nosso pretérito perfeito indiferenciadamente para o passé simple, com toda sua carga, não meramente gramatical, mas semântica e estilística até, e o passé composé. Pois é, em sã consciência não posso. Tenho alternativa? Não, não que eu vislumbre, ao menos. Compenso esse não-poder-em-sã-consciência simplesmente arrancando os cabelos. (Mas tentei uma leve compensação, se bem que fraquinha, fraquinha; outra hora eu conto.)
Passo dias, noites, fins de semana lendo outras traduções, em português, em inglês, em italiano, em espanhol. Vejo que não são problemas exclusivos meus; vejo que cada qual tentou resolver da maneira que pôde ou considerou melhor. Passo dias, noites, fins de semana conversando no Clube dos Amigos do Pequeno Príncipe. Tomo coragem, mais uma vez, e me lanço à tradução. Mais uma infinidade de suspiros, mas pelo menos, sei lá, a gente sente uma pontinha de satisfação por poder parar, pensar e entender a razão por que está fazendo assim ou assado.
Terminada a tradução, concluo: “Denise, és uma boba mesmo! O texto é elaboradíssimo, e ficavas aí achando que era um livrinho meloso e datado! Bem feito o peteleco no teu preconceito!” (Mas logo consolo a mim mesma: “Bom, tão boba afinal não foste, pois aprendeste mais uma”.)
Zé Perri, meu pedido de desculpas pelo juízo precipitado e meus cumprimentos pelo livro. Muito bonito, de fato.
Quem se interessar pelas longas conversas tradutórias, pode conhecer o Clube dos Amigos do Pequeno Príncipe, aqui:  https://www.facebook.com/groups/1534203010164458/.


3 de março de 2015

a dedicatória



le petit prince é dedicado a léon werth. uma figura e tanto: saint-exupéry diz na dedicatória que werth, seu melhor amigo, estava solitário, passando frio e fome: com efeito, como membro da resistência francesa, werth havia se refugiado nos montes jura, em situação bastante difícil. para quem se interessar, não faltam materiais na internet sobre ele.


2 de março de 2015

masculino / feminino II


em masculino / feminino, aqui, eu comentava a (quase) inevitável feminização do universo tão masculino do PP, em sua tradução para o português. a propósito dessa mesma questão da diferença de gêneros no francês e no português, eis mais um ótimo texto de ivone benedetti, também tradutora do PP, aqui.



1 de março de 2015

de fenecos, raposas, rosas, amantes e esposas


como se sabe, exupéry transfigurou vários elementos reais e biográficos para compor a alegoria do pequeno príncipe. um dos mais destacados é a raposa. a certa altura do livro, o principezinho critica o desenho da raposinha feito pelo narrador, alterego do autor. diz ele: mas ela tem as orelhas compridas demais!



na verdade, o desenho do narrador/autor mostra um feneco, um pequeno raposinho do deserto que saint-exupéry viu numa de suas andanças/voanças saarianas e até tentou domesticar (na mais explícita antecipação da domesticação da raposa feita pelo pequeno príncipe).



havia saint-exupéry comentado sobre o feneco, em terra dos homens:
Mon fénech ne s’arrête pas à tous les arbustes. Il en est, chargés d’escargots, qu’il dédaigne. Il en est dont il fait le tour avec une visible circonspection. Il en est qu’il aborde, mais sans les ravager. Il en retire deux ou trois coquilles, puis il change de restaurant. 
Joue-t-il à ne pas apaiser sa faim d’un seul coup, pour prendre un plaisir plus durable à sa promenade matinale ? Je ne le crois pas. Son jeu coïncide trop bien avec une tactique indispensable. Si le fénech se rassasiait des produits du premier arbuste, il le dépouillerait, en deux ou trois repas, de sa charge vivante. Et ainsi, d’arbuste en arbuste, il anéantirait son élevage. Mais le fénech se garde bien de gêner l'ensemencement. Non seulement il s’adresse, pour un seul repas, à une centaine de ces touffes brunes, mais il ne prélève jamais deux coquilles voisines sur la même branche. 
Tout se passe comme s’il avait la conscience du risque. S’il se rassasiait sans précaution, il n’y aurait plus d’escargots. S’il n’y avait point d’escargots, il n'y aurait point de fénechs.

essa sabedoria natural do feneco é antropomorfizada na raposa do livro. e não são conselhos de alimentação autossustentável - embora, metaforicamente, talvez também o possam ser. mas, atendo-nos mais à letra, são conselhos sentimentais, existenciais que saint-exupéry põe na boca da sábia raposinha-feneco.

os sábios conselhos que o animalzinho ministra são as recomendações de silvia hamilton reinhardt, amiga e amante de saint-exupéry já citada aqui, a quem ele recorria em suas fases conjugais mais inóspitas ou turbulentas. é silvia quem lhe diz e mostra que, entre tantos casos e romances extraconjugais de saint-exupéry, é sempre e apenas consuelo seu verdadeiro amor ("A Rosa" de seu lar, que se diferencia de todas as outras "rosas comuns" que o PP vê num jardim público, em referência aos múltiplos casos extraconjugais de saint-exupéry) e a quem saint-exupéry sempre volta e a quem o pequeno príncipe quer e deve voltar. [aqui, diga-se de passagem, o nexo para esse "dever voltar" é dado pelo senso de responsabilidade que lhe incute, uma vez mais, a raposinha-feneco: retornarei ao tema.]

é ainda silvia quem teria dito a frase "não se vê bem senão com o coração", que abriu caminho no livro, sempre na voz da raposa amiga e conselheira, e que se tornou parte de uma das máximas mais celebradas da obra.

parecem-me inegáveis, nesse amálgama entre o feneco do deserto líbio que saint-exupéry tentou domesticar e sua amiga nova-iorquina, porto seguro, ombro leal e coração acolhedor, os traços que vêm a compor a raposa amansada e afeiçoada pelo PP. o que vem primeiro, a meu ver, em termos de conteúdo, é a sabedoria da amiga, quase que sua consultora sentimental; o animal em que ele a encarnou, creio eu, veio por extensão e associação. e assim se criou a imagem da raposa que o PP encontra em suas andanças pela terra (que são, aliás, mesmo em termos biográficos, ao mesmo tempo reais e metafóricas).


os baobás


desnecessário dizer, mas apenas para ficar registrado: a imagem do baobá, cujos brotos infestam constantemente o planeta do PP e que ele precisa erradicar diariamente, é em geral interpretada como metáfora do nazismo.




como, quando e por que o tradutor para e vai tomar um café


uma complicação muito bem exposta por ivone c. benedetti, aqui.


- mas isso não é um mouton, é um bélier!

a solução excelente da tradutora, por outro lado, reforça a feminização do universo tão masculino da obra, a que somos obrigados no português, como comentei aqui. à serpente e à raposa, soma-se agora a ovelha. 


B-612


ao que consta, o nome do asteroide onde vivia o PP, B-612, inicialmente citado no capítulo 4, inspira-se no número de registro de um dos aviões do correio aéreo que saint-exupéry pilotava, o A-612.

o "ditador turco" citado no mesmo capítulo é atatürk, responsável pela modernização e ocidentalização da turquia nos anos 1920, inclusive com a chamada "lei do chapéu" (1925), isto é, a abolição do uso do fez e demais artigos da indumentária tradicional e a substituição por trajes ocidentais.

sobre uma possível aproximação entre os vários asteroides visitados pelo PP em capítulos subsequentes e os asteroides de mesma numeração descobertos entre 1892 e 1910, ver aqui.