1 de março de 2015

masculino / feminino


a tradução do PP não é, em princípio, nada de estrondosamente difícil. há algumas peculiaridades mais complicadazinhas - como o verbo apprivoiser, que citei aqui, e outras que citarei adiante.

mas há, sim, uma peculiaridade realmente intransponível, e não de pequena monta. trata-se da própria concepção de fundo. explico-me.

o universo de le petit prince é essencialmente, para não dizer exclusivamente, masculino. o narrador, o protagonista, os seres vegetais e animais, as figuras-tipo dos vários planetas são do sexo (e do gênero gramatical) masculino. o único ser feminino é a a rosa, ser frágil e delicado que demanda proteção, eixo das atenções e preocupações do pequeno príncipe.

porém, em português, le serpent boa e le serpent são femininos, assim como le renard e les papillons. o pequeno príncipe então fica rodeado de outros seres femininos, de papel essencial na narrativa: justamente a raposa que lhe permite enxergar seu amor pela rosa e a serpente que lhe permite a viagem de volta ao lar.

na tradução, é claro que, no limite, poderíamos forçar o uso de algum termo masculino (ofídio? raposinho?). todavia, o preço de perder a simplicidade do termo mais corrente é alto e, ainda assim, nada garantiria que o enquadramento masculino ganhasse a nitidez explícita e decisiva que tem no original.

nesse sentido, torna-se quase inevitável que a transposição do texto resulte em certo apagamento dos papéis. dilui-se o contraste masculino/feminino, descentralizam-se as posições.